
(artigo publicado originalmente em Sete MArgens a 18 Jul 2021)
Neste tempo de férias entre dois anos letivos é tempo de fazer balanço, de reler o vivido e de sonhar o ano que vem… Olhando para este ano, um ano que não foi fácil para ninguém, com sucessivos confinamentos e de adaptação constante às regras sanitárias, agradeço as pessoas a quem me entrego numa boa parte da minha missão: as crianças.
Nos últimos três anos, tenho tido o privilégio de trabalhar e partilhar a vida com crianças entre os seis e os onze anos, que vivem em duas realidades muito diferentes: num bairro do centro de Paris e em Saint Ouen l’Aumône, uma cidade a norte de Paris, num bairro a que aqui chamam de “prioritário”. As primeiras são de famílias com uma grande capacidade económica, têm uma casa na cidade e uma casa no campo, viajam bastante e têm todos os meios de que necessitam para estudar bem e crescer. As segundas vivem num bairro mais pobre, não podem ir de férias a outros lugares e em casa não têm as mesmas condições para estudar. No entanto, há muito em comum entre elas e é isso que quero realçar aqui.
Começo pela sua admiração pelas pequenas coisas, as mais simples. Ficam contentes com o facto de aparecermos e fazermos uma “palhaçada”, com um abraço, com um sorriso… com elas aprendo a reconhecer e a agradecer as pequenas alegrias quotidianas.
Ao fazer uma retrospetiva (não só deste ano), caio na conta de como estas pequenas pessoas me dão vida, me fazem sair de mim e me ensinam a olhar a realidade com alegria e, sobretudo, esperança. Costumo dizer que percebo cada vez melhor as palavras de Jesus: “Em verdade vos digo: Se não voltardes a ser como as criancinhas, não podereis entrar no Reino do Céu. Quem, pois, se fizer humilde como este menino será o maior no Reino do Céu.” (Mateus 18, 3-4)
Esta abertura das crianças traduz-se também na sua capacidade de acolhimento. Seja em Saint Ouen, seja em Paris (ou noutro lugar), os mais pequenos acolhem muito facilmente as pessoas que não conhecem e mesmo aqueles que são diferentes. Podem estranhar, podem desconfiar, sim, e isso é normal, mas em pouco tempo quem era novo, quem era diferente passa a ser aceite e a fazer parte da sua vida. O mundo dos adultos seria tão diferente se olhássemos os outros com este coração de criança!
Ao contrário do que possamos pensar, podemos aprender muito acerca do perdão com as crianças. Elas não guardam ressentimentos. Quantas vezes, depois de me zangar seriamente com alguns miúdos em Saint Ouen l’Aumône, chego na quarta-feira seguinte e eles vêm a correr dar-me os bons dias como se nada tivesse acontecido. Isso não quer dizer que se esqueceram, mas, para eles, a relação, a nossa presença é bem mais importante. Ensinam-me a não desistir das relações, a recomeçar uma e outra vez, a perdoar. É tão simples para eles, porque não é para nós?
Outra das características dos mais pequenos é o facto de viverem profundamente o presente e de o aproveitarem com intensidade. Não fazem, como nós, grandes planos, grandes filmes sobre o que poderá vir a acontecer… e isso fá-los viver com mais leveza e ensina-nos a aproveitar cada momento, na simplicidade.
Finalmente, muitas vezes há que aprender a baixarmo-nos ao seu nível, a ouvir com paciência, a pormo-nos no seu lugar. Nem sempre é fácil, especialmente quando temos 20 ou 30 a quem dar atenção, mas tenho aprendido como é importante parar de vez em quando com algum, sentar-me, dar-lhes tempo. As crianças precisam de ser ouvidas, de se sentir importantes, de sentir que têm algo a dizer. Não é fácil conciliar a autoridade e a ternura, o deixar-lhes a iniciativa e ao mesmo tempo dar-lhes regras… É um desafio de toda uma vida… mas vale a pena! E fazê-lo com os mais pequeninos, abre-nos a estas mesmas atitudes para com os adultos com quem vivemos e nos cruzamos… Vale a pena tentar!
Agradeço muito estes pequeninos que trazem o Reino de Deus ao meu dia-a-dia e me ensinam a acolher, a perdoar, a recomeçar e a viver na simplicidade.
Clara Lito