
25 DE MARÇO DE 2020 – P. David Cabrera, SJ
Há já muitos meses que me tinha comprometido com as Escravas da Comunidade de Entrevías (Madrid) a partilhar com elas uma eucaristia neste dia, o da sua festa: o dia da Escrava. Naquela ocasião nem a mim nem a elas nos passou pela cabeça que seria assim, através das redes e nas nossas casas, que iriamos celebrar, através de écrans, unidos na distância. É que Deus, tal como Maria, não para de nos surpreender. Temos que aceitar os acontecimentos, tal como nos aparecem. Agradecendo a oportunidade que Deus nos dá de nos juntarmos, de aprofundar e dar perspetiva a estes momentos da nossa vida, para aumentar a confiança e a fé.
É uma experiência estranha. Estou na minha comunidade, na capela da minha casa, na capela de todos os dias, quotidiana, sabendo que por detrás de uma simples câmara há, certamente, muitas pessoas que estão a ver, celebrando juntas. Ressoam em mim aquelas palavras de Madelein Delbrêl: “Deus está nas relações próximas e curtas, no que está mais próximo de nós”. E é aí que temos que deixar que hoje ressoe o Mistério de um Deus encarnado, no mais quotidiano e concreto da nossa vida.
Não se trata de uma festa que esteja muito na moda. Se ligarem para os vossos contactos e lhes disserem que celebram hoje o “dia da Escrava”, mais do que um ou dois se vão escandalizar. Porque ser escrava não está na moda e não é tema nas redes sociais. Mas isto é não compreender com profundidade, mas pobremente, o verdadeiro sentido da festa de hoje. Escutemos, por um instante, Santa Rafaela: «Pai das minhas entranhas, isto sou eu, miséria e nada, mas tu és grandeza e omnipotência; dá-ma, Pai das minhas entranhas (a grandeza) para viver neste mundo e comigo mesma, só em pontas dos pés; e a omnipotência para que eu seja interior e exteriormente a tua perfeitíssima imagem e faça, não digo coisas comuns perfeitíssimas, mas até milagres, para a tua maior honra e glória».
Ser Escrava é essencialmente pôr toda a nossa confiança no coração de Cristo. Toda a nossa liberdade e obediência no coração de Cristo. Pôr toda a nossa paixão e afeto no coração de Cristo. E estar verdadeiramente enamorado e enamorada “mesmo que seja em bicos dos pés” do coração de Cristo.
Temos hoje um verdadeiro modelo em Maria, para nos contagiarmos deste Mistério: um sim que nos enche de gozo e de cruz, mas que nos ajuda permanecer sempre junto ao coração de Cristo.
Entre os milhares de WhatsApp e “memes” que recebemos nestas duas últimas semanas, há um de que gostei muito. Achei-o muito profundo e sensato. Perguntava-se: O que quero ser durante o COVID-19? Propunha-se que fosse vivido em três zonas diferentes: a zona do medo, a zona da aprendizagem e a zona de crescimento. Não conheço o autor, mas gostava de partilhar convosco, como um empréstimo, este mistério da Encarnação que celebramos hoje na festa da Anunciação.
Este mistério de Deus em Maria é muito difícil de compreender. É complexo. Talvez como tudo o que estamos a viver. Normalmente aconselhamos sempre a sair mais de nós próprios e entregarmo-nos mais aos outros, indicamos e propomos um exercício de saída; a Igreja em saída do Papa Francisco. Pois agora, o lema e a dinâmica é: “fica em casa”. Talvez possamos, também nesta passividade, acolher o Mistério de Deus em nós. A que é que Deus nos está a chamar a cada um e a cada uma? Como queremos viver este ser Escrava do Senhor?
- Que quero ser, na zona do medo? Perante o anúncio do Anjo, Maria ficou perturbada, encheu-se de pânico e começou a justificar-se com a incapacidade de continuar a acreditar ou acolher a chamada de Deus. “Não conheço varão e isto não é possível neste momento da minha vida”. Quantas vezes não sentimos que o Senhor nos chama para o serviço e a oração e dizemos por dentro: “não é o momento”, não sei…”, não posso”. Viver no medo é sempre viver em “saldo”. O mais barato, o mais acessível, o mais fácil. E muitas vezes totalmente paralisado. Com avançar apesar do medo? A encarnação mostra-nos a dinâmica de um olhar compassivo. Temos que aprender a olhar com novos olhos, como Maria, de forma sensível, capaz de continuar a gerar vida à nossa volta. Amando. Servindo. Olhando e deixando-nos atingir.
- Que quero ser, na zona da aprendizagem? Interrogamo-nos sempre sobre qual vai ser o benefício que tiramos disto. Quantas vezes ouvimos: que ganho eu com isto?; que aprendo se eu for, se sou dócil, se partilho, se vivo? Maria, no recanto da sua casa de Nazaré, talvez tivesse perguntado ao Anjo qual era o significado daquilo e que benefícios ela teria. Não podemos viver sempre à espera das vantagens que iremos ter. Porque isso limita a entrega e a generosidade. A vacina está na dinâmica da encarnação, do descer de Deus. A Humildade do pequeno e do simples. Para Maria, o único benefício era uma pequena alegria na forma de um pequeno menino. Deus convida-nos a acolher sempre o pequeno e o simples, assim seremos mais Escravas d’Ele e por Ele. Aprender a humilhar-nos para ser um pouco mais como Jesus.
- Que quero ser, na zona de crescimento? Ao longo da nossa vida vamos descobrindo momentos em que crescemos e outros em que minguamos muito. Podemos viver a nossa missão, o que o Senhor quer de nós, com os altos e baixos, em qualquer vocação: a religiosa, a laical a familiar. Viver com um olhar posto em nós. Com fazem as crianças e adolescentes que se medem para ver onde chegam. Ter expetativas humanas que por vezes nos ajudam a empurrar para cima, mas muitas outras vezes nos fazem ir para baixo. Não será que estamos muito concentrados em nós e no nosso ego? Maria disse sim, porque se esqueceu de si. Não sei se teria dito que sim se tivesse outras expetativas mais fortes do que a de servir a Deus. Maria deixou-se levar por Deus e o seu único desejo era alcançar a alegria que vinha de Deus. Aprendemos a crescer a partir da dinâmica da encarnação, do gerar. O que Maria faz é dizer que sim a que Deus cresça no seu interior, tomando forma humana para nós. Esse Deus-connosco faz-se carne no seio de Maria. O nosso verdadeiro crescimento é deixar que Deus cresça em nós. Deixar que Deus gere vida dentro de cada um de nós, para transmitir vida, e assim encher o nosso mundo de alegria.
Hoje, podemos deixar ressoar a partir do coração de Deus, que vemos em Jesus a pequenez do homem e a grandeza de Deus. Maria é escrava pelo seu fiat, pelo seu sim, por pôr todo o coração no coração de Cristo.
Escutemos Santa Rafaela e, para ser mais de Deus, deixemo-nos envolver por Deus na nossa conversão pessoal: “Só em Jesus, por Jesus e para Jesus, toda a minha vida e todo o meu coração e para sempre”.